perda

Precisamos falar de aborto

1 de abril de 2015 , In: Direitos , With: No Comments
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Publicado em 20 de julho de 2015 no site Biscate Social Club
Por Adriana Torres*, Biscate Convidada

Eu preciso falar…
(de aborto, de machismo, de médicos, da Elis)

Com 42 anos de idade, eu achava que já tinha passado pelas minhas maiores batalhas na vida. Mas nada dessa minha vida louca vida me preparou para os primeiros meses desse maldito ano de 2015.

Pela primeira vez desde os meus quase esquecidos sete anos, quando sonhava em ser veterinária, eu confesso: não faço ideia do que quero ser agora que já cresci. E só não quero deixar de ser (ou estar, sei lá) por essa teimosia infinita de virginiana com ascendente em touro que acha que pode fazer alguma diferença nessa mundo insano.

Eu preciso falar de aborto.

Foram seis meses planejando minha segunda gestação. Inicialmente com medo, por conta da minha idade, medo que se dissipou com o novo ginecologista referenciado pelo movimento do parto humanizado, com a conversa com a enfermeira obstétrica sobre o possível parto domiciliar que me resgataria do nascimento do leãozinho, parto esse que me foi roubado nos últimos minutos do segundo tempo, que me sangrou a alma e me fez conhecer o estranho mundo da violência obstétrica.

Eu sabia que engravidaria. Eu já conhecia minha pequena Elis e seu desejo de vir. Ela me aparecia nos sonhos, com seus cabelos cacheados e dourados, suas bochechas rosadas e o riso fácil.

Investi no sonho, melhorando minha alimentação que é usualmente bem ogra, investindo no inhame duas vezes por semana, na vitamina B diária, nas castanhas, no abacaxi, até na beterraba com couve (que honestamente, eu detesto).

No dia que viria minha menstruação fiz o teste e a segunda linha rosa, ainda fraquinha, me encheu de amor e alegria. Tudo estava acontecendo como planejado.

Na mesma semana meu cão sênior piorou muito de saúde e a veterinária me pediu que eu o libertasse da dor. Já não andava direito, não se alimentava e mal conseguia beber água. Foi com o coração partido que dei meu adeus, abraçada ao seu frágil corpo após quase 17 anos de amizade. Entre a dor de perdê-lo e a alegria da confirmação da gravidez, oscilei meus dias entre lágrimas e sorrisos.

Primeiro ultrassom agendado, Cheguei na clínica já antecipando a emoção de ouvir o coração do meu feijãozinho. Uma hora e meia de exame, com direito a consulta a outra especialista da clínica e o veredicto que me tirou o chão: a gestação não tinha evoluído como esperado, o saco gestacional estava correspondente a sete semanas, via-se a vesícula mas não o feijão e muito menos se ouvia o coração. Pior: uma suspeita forte de uma segunda gestação na trompa, caracterizando um possível caso (raríssimo em uma gestação natural) de gestação heterotópica, uma dentro e outra fora do útero.

Passei dias me sentindo no inferno. Foram cinco exames de beta quantitativo dia sim, dia não, para acompanhar sua involução e, em cada ida ao laboratório eu parecia que ia morrer de tanta dor. Mais dois ultrassons para tentar confirmar ou não a suspeita da heterotópica, descartada no último quando o sangramento já dava sinais.

Final de semana marcado pelas pequenas cólicas e um sangramento leve. Eu só pensava nas palavras da terapeuta: “Quem ama de verdade deixa ir”.

Na segunda-feira, às 14h00, saiu um coágulo grande, assustador. E, de repente, a cada 10, 20 minutos saia um coágulo ainda maior. As cólicas não paravam, cada vez que saia um a dor voltava e eu já sabia que outro sairia. Em cada coágulo eu o investigava para averiguar se o saco gestacional tinha saído, mesmo sem entender bem do assunto. Por volta das 18h00 eu já não conseguia sequer me levantar sozinha e pedi arrego.

Com a ajuda do marido fui para o hospital, receosa de uma curetagem indevida e ciente que, caso não houvesse a expulsão total a indicação correta seria a AMIU (Aspiração Manual Intra Uterina).

Escolhi um hospital público, pois no privado dificilmente eu teria escolha ou seria ouvida. O que eu não sabia é que, mesmo em um hospital público, existem profissionais cansados, abitolados e que não seguem a ideologia da direção, essa, reconhecidamente adepta do atendimento humanizado. E, principalmente, que mesmo em uma condição clínica crítica, o aborto está no fim da fila de prioridades. Pode não ser o protocolo, mas é a realidade.

Eu não vou dar detalhes do horror que passei desde que a triagem me mandou com uma bela bolinha laranja no prontuário para a sala do plantonista. Foram 12 horas de espera e de luta, resistindo contra a curetagem, alternando o choro com a raiva da situação, deitada no mesmo quarto junto a duas mulheres em trabalho de parto e onde, a cada meia hora uma enfermeira entrava para auscultar o coraçãozinho dos que estavam para chegar ao mundo. Não dá pra descrever como aquela ausculta me rasgava inteira.

(Pausa pra respirar e chorar.)

Uma amiga virtual se materializou no hospital como um anjo guerreiro e passou a noite comigo, já que o marido precisava ficar com o filho em casa. E foi ela quem viu as enfermeiras chorando nos cantos, penalizadas com a situação absurda que assistiam.

Num relance, entendi o que estava acontecendo. Eu fui deixada lá de castigo. Porque eu quis “impor” a minha vontade. Me senti humilhada. Por mim, pelas profissionais que lá estavam e que não tinham autonomia alguma. Apenas no dia seguinte, quando um novo plantonista apareceu, fui atendida e liberada. Ele, ciente dos protocolos atuais, fez pessoalmente um ultrassom e me levou para a sala de cirurgia para realizar a AMIU.

Já faz mais de três meses que isso aconteceu. Coincidência ou não, a AMIU foi realizada no dia do aniversário de setenta anos de Elis Regina, a homenageada pela gravidez que não foi.

Meu corpo, minhas regras? Não no Brasil, onde o aborto é criminalizado, afetando todas que abortaram. Quase um quinto das gestações termina em um aborto espontâneo. Uma em cada cinco mulheres já interromperam voluntariamente a gravidez. Como não falar de aborto?

Eu preciso falar do machismo.

Dizem que o diabo mora nos detalhes. Eu percebo que o machismo mora nos detalhes. No hospital-referência, as mulheres eram as operárias e os homens os comandantes (grande novidade…). E, nesse ponto, vamos concordar: Nós que parimos. Nós que abortamos. Nós que sabemos a dor que sentimos. Não eles!

Eu não me arrependo de ter ido a um hospital público, pelo contrário, agradeço por ter ido lá, pois caso tivesse escolhido um privado sequer teria conseguido ser escutada. Mas o machismo daquele momento não será esquecido nem perdoado. Não pode ser. Nesse momento, só o que desejo é que mulheres estejam no comando. Porque enquanto o homem estiver não conseguiremos ter nossos desejos e necessidades respeitados.

Precisamos de mais mulheres no comando, seja no hospital, na política, na indústria, na mídia. De preferência mulheres feministas, empoderadas, de sangue nozóio e que saibam que sim, o aborto é assunto de Estado, muito mais do que a mandioca.

Mas eu também preciso falar de discurso e da empáfia da classe médica.

Precisamos de médicos que estejam abertos às novas evidências científicas. Que reaprendam os conceitos de humanidade e humildade. Que saibam que não são deuses e que o parto é da mulher, o corpo é da mulher e o aborto também é da mulher. Sua função é basicamente se fazer presente para que tudo saia como o planejado ou, para que o que já saiu fora do planejado tenha os riscos minimizados e a paciente acolhida.

Eu preciso falar. Não me importa se vocês não estão me ouvindo. Eu realmente preciso falar. =/

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