Grupo Autismo em Evidências*, em parceria com a Dra. Raquel Guimarães Del Monde
Para falarmos de estatísticas relacionadas ao autismo, se faz necessário entender a prevalência da condição. Do ponto de vista da saúde pública, conhecer a prevalência é fundamental para a alocação de recursos para as pesquisas e a assistência aos indivíduos dessa condição.
O aparente “aumento vertiginoso” das estatísticas do Transtorno do Espectro do Autista (TEA) nas últimas décadas tem preocupado profissionais e uma parcela da sociedade, sendo levantada por diversas vezes a hipótese de uma “epidemia”. Entretanto, é importante que esses números sejam analisados à luz da evolução do conhecimento científico neste mesmo período, além do contexto histórico-cultural de cada época.
O autismo não passou a existir em 1943 com a descrição de Leo Kanner. Autistas existem desde que o mundo é mundo. Aliás, pelo menos duas décadas antes da publicação do trabalho de Kanner, a condição que hoje conhecemos como TEA foi descrita minuciosamente pelo neurologista Grunya Sukhareva, na Rússia. Numerosos outros autores estavam envolvidos com estudos sobre a “nova” condição – entre eles Hans Asperger, na Áustria, que descreveu publicamente todo o “continuun” do autismo em 1938.
Entretanto, estudos de prevalência só podem ser feitos quando os critérios para seu diagnóstico são oficializados e aceitos pela comunidade científica. De outra forma, os casos continuarão não identificados e relegados à invisibilidade estatística. E essa oficialização veio com Kanner.
O primeiro estudo de prevalência foi feito por Lorna Wing, na Inglaterra. Porém, ela logo percebeu que os critérios rígidos, monolíticos e limitados de Kanner deixavam muitos autistas de fora do diagnóstico. Ao aprofundar suas pesquisas e redescobrir os trabalhos de Asperger, Lorna e sua equipe, já na década de 70, previram uma explosão de diagnósticos, já que, obviamente, à medida que os critérios para diagnóstico se ampliam, a prevalência da condição também se altera.
Foi justamente o que ocorreu. As estatísticas do Centers for Disease Control and Prevention – CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças americano) em 1966 traziam uma prevalência de 1:2.500 para o autismo. Em 1987, essa prevalência passou para 1:1.400. Em 1991, o diagnóstico de autismo passou a garantir o suporte da educação especial, e as escolas começaram a ter controle das crianças matriculadas que possuíam esse diagnóstico. A prevalência no ano de 2000 passou a 1:150. Em 2006, foi sistematizada a realização de triagem de todas as crianças nas consultas de rotina, aos 18 e aos 24 meses e já em 2008, a prevalência estimada era de 1:88. O pico foi atingido em 2012, quando o CDC chocou o mundo com o famoso 1:68, ocasionando muita polêmica e diversos questionamentos.
Agora, uma nova revisão do CDC trouxe novas preocupações e o retorno de teorias infundadas a respeito, pela estatística de 1:59.
Vários pesquisadores ao redor do mundo levantaram uma importante discussão acerca do entendimento da prevalência do autismo. As questões discutidas são tão ou mais importantes do que a obtenção pura e simples de um número. Muitos fatores precisam ser considerados quando analisamos as estatísticas relacionadas ao autismo:
Falar de estatísticas sobre autismo no Brasil, então, ainda é muito complexo. A Organização Mundial de Saúde – OMS utiliza como referencial a prevalência de 1% e, o país adota esse índice como estimativa, mas estamos longe de termos condições de checarmos esse referencial, exatamente pela precariedade de serviços e profissionais habilitados para o diagnóstico, principalmente em cidades do interior dos Estados.
Espera-se que o nosso Sistema Único de Saúde – SUS seja fortalecido cada vez mais e, com a adoção de um protocolo confiável, baseado em evidências científicas, que estabeleça padrões confiáveis para a avaliação do neurodesenvolvimento das crianças, essa situação possa melhorar, proporcionando, no futuro, serviços e profissionais mais qualificados e capacidade para realizarmos pesquisas mais profundas sobre o tema no país, permitindo assim um diagnóstico precoce e o atendimento de todas e todos os brasileiros que precisarem.
* Autismo em Evidências: Adriana Torres, Adrianna Reis, Amanda Paschoal, Andrea Werner, Aline Veras, Fernanda Santana, Giselle Zambiazzi, Iara Assessú, Melania Amorim, Raquel Del Monde, Rita Louzeiro.
Referências:
Autism phenotype versus registered diagnosis in Swedish children: prevalence trends over 10 years in general population samples
BMJ 2015; 350 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.h1961 (Published 28 April 2015)
Cite this as: BMJ 2015;350:h1961
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