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A palavra da vítima

4 de agosto de 2016 , In: Direitos , With: No Comments
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Uma jovem militante de um partido ultra-conservador acusa um famoso político também da direita de assédio sexual, tentativa de estupro e agressão. Após relatar e enviar possíveis provas para um professor de jornalismo e para o Presidente da ala jovem do mesmo Partido, ela resolve desmentir toda a história e acusar a esquerda de estar mentindo.

Esse tem sido o assunto das redes sociais nos últimos dias e, infelizmente, o que mais vejo são comentários assim:

infelicianocomentarios

Eu não conheço a jovem e não posso afirmar se ela está falando a verdade ou não. Mas se vamos falar do princípio da presunção da inocência, ele deve ser aplicado principalmente à ela que está no papel da vítima e não o contrário. A palavra da vítima tem alto valor probatório em casos como o crime de estupro. Esse entendimento não é meu, é do Supremo Tribunal de Justiça:

ESTUPROSTJ

Infelizmente o descrédito não é só dela. Bora lembrar que dois meses atrás um caso de estupro coletivo que chocou o país estava tomando o mesmo caminho: descrédito da vítima, apesar de vídeos divulgados pelos próprios agressores provarem o ocorrido, culpabilização da mesma e comentários condenatórios. A própria Justiça duvidou do crime, mesmo sendo uma menor e tendo provas tão contundentes. Se não houvesse tanta mobilização a favor da menina por parte dos coletivos feministas provavelmente seriam todos inocentados e a jovem permaneceria como sendo a louca que após uma festinha doida resolveu atacar os pobres participantes.

Isso é a cultura do estupro, muito bem enraizada em nossa sociedade. Em 2014 foram registradas 47.646 denúncias de estupro no país, de acordo com os dados da oficiais das secretarias estaduais da Segurança coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o que daria 1 estupro a cada 11 minutos. Considerado o crime mais subnotificado do mundo, estima-se que entre 70 a 90% dos casos não são denunciados, podemos ter cerca de uma vítima de estupro a cada 1 minutos no país.

A subnotificação é um sintoma da cultura do estupro. O termo surgiu na década de 70, nos Estados Unidos, para chamar a atenção para a culpabilização das vítimas, fato recorrente em casos de abuso sexual. Cultura vem da palavra agricultura, ou seja, cultivar. Cultivamos crenças, conhecimentos que não são inatos e sim construídos por nossa sociedade e que permanecem sendo reforçados por gerações.

A cultura do estupro é assim um conjunto de crenças que reforça a objetificação do corpo da outra pessoa, geralmente crianças e mulheres, a partir de determinados comportamentos que são ensinados como corretos. As pequenas violências consentidas desde a infância, como o levantar a saia da coleguinha de sala, a romantização do “beijo roubado”, a insistência em um padrão de comportamento feminino, as piadinhas e estereótipos sobre a mulher fazem parte dessa cultura.

A culpabilização da vítima é, sem dúvida, a pior parte. E ela começa em casa, quando a vítima conta o que sofreu. Parentes perguntam o que ela estava fazendo, onde estava, o que bebeu. Continua na delegacia, onde profissionais muitas vezes despreparados fazem questionamentos que colocam em xeque a credibilidade da vítima. No exame de corpo delito, que é também uma agressão ao corpo que, poucas horas antes, já havia sido violado, a mulher se sente abusada novamente. Se o exame é indeterminante (pelo agressor ter usado camisinha, pela vítima ter ficado quieta para evitar apanhar ou morrer), provavelmente seu caso será arquivado, afinal só existe a palavra da vítima. Essa situação fica ainda pior quando o agressor é o namorado, o marido, o pai, o tio… além de ter a denúncia questionada, a vítima terá que voltar a conviver com seu agressor após denunciá-lo – em vão.

No Brasil, 70% das vítimas tem menos de 18 anos sendo que 50,7% tem menos de 13 anos , 89% são do sexo feminino e 67,36% dos agressores são conhecidos das vítimas. O número de agressores desconhecidos aumenta de acordo com a idade da vítima.

Por ser uma cultura, atuar na repressão dessa violência é muito mais complexo que a aprovação de uma lei específica. A castração química, por exemplo, não resolve o problema, já que estupro não tem a ver com sexo, mas com o poder e o controle sobre o outro. Sendo apenas a administração de hormônios para diminuir o desejo sexual, não atua no cerne do problema.

Voltando à jovem em questão: Ela pode estar mentindo? Sim, pode. Ela pode ter dito a verdade e recuado por estar sendo seriamente ameaçada? Sim, pode. Cabe aqui uma investigação profunda e, principalmente, respeito à sua palavra. A linda da Renata Correa resumiu pra gente:

Eu não gosto de dar conselhos, mas esse blog aqui existe para refletir sobre comunicação e direitos, então bora lá:

Se você, querida amiga, querido amigo, está se esforçando para ser uma pessoa legal e não oprimir a coleguinha ou o coleguinha, lembre-se da máxima:

Respeite a palavra da vítima. Sem mas, sem se, apenas respeite.

Já é um bom começo.

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