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A arte de transformar preconceitos em textos inspiradores

5 de março de 2019 , In: Aprendendo com o autismo, Comunicando , With: No Comments
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ou: A manipulação textual em prol da invisibilização das minorias.

Adriana Torres

Mais um 8 de março chegando e, infelizmente, não poderei me juntar às companheiras de luta na manifestação por conta do meu calcanhar fraturado. (carinha de tristeza aqui)

Mais uma vez, terei o desprazer de ver diversas mensagens de “congratulações” por um dia que é de luta, não de homenagens.

Algumas mulheres poderão dizer: “ainnn eu gosto sim de ser homenageada, elogiada, de ganhar flores, presentes…” Sim, a maioria gosta. Eu também, pelos motivos certos, ou mesmo sem eles. O dia 8 de março existe não para celebrar a mulher e sim para refletirmos sobre ser mulher em um mundo dominado por homens.

A origem do dia remonta a uma série de protestos realizados por mulheres, do fim do século XIX ao início do século XX. Estamos falando de um período em que mulheres operárias trabalhavam entre 12 a 14 horas por dia, sem direito à licença-maternidade, sem participação na política, sem condições adequadas de trabalho, entre outros absurdos. Sufrágio universal, jornada de oito horas de trabalho, licença maternidade e proibição de trabalho feminino em áreas insalubres eram as principais reivindicações das trabalhadoras na época.

Foi na Rússia, no dia 23 de fevereiro do calendário juliano (08 de março, pelo calendário gregoriano) de 1917 uma das mais marcantes manifestações femininas e que foi o estopim para a revolução russa. Leon Trotsky mesmo relata que não imaginaram que este “dia das mulheres viria a inaugurar a revolução”.

Em 1975 a ONU proclamou o Ano Internacional da Mulher e o 8 de março foi oficialmente adotado como dia Internacional da Mulher pelas Nações Unidas. O objetivo é lembrar as conquistas e dos desafios que temos pela frente, em um mundo ainda dominado pelo sistema patriarcal e no qual a desigualdade de gênero permeia nossa vida.

– “Adriana, o que isso tem a ver com o título?”

Calma, estou chegando lá.

As mensagens de homenagens a mulheres no dia não são apenas um “esquecimento” da verdadeira origem do dia. O sistema capitalista é manipulador e, forçando um apagamento das lutas, transformando a data em mais um dia comercial, enfraquece a busca pelo fim das desigualdades – que é pilar do sistema!

Fomos criadas no sistema patriarcal, capitalista, e, assim como somos por ele estruturadas, também o estruturamos. Eu confesso, até dez anos atrás, não fazia ideia do quanto estava apenas reforçando-o quando enviava mensagens carinhosas para as outras mulheres nesse dia, sem parar para refletir sobre nossos desafios atuais (veja, dá pra mandar mensagem carinhosa sim, o que não rola mais é não parar para pensar no que vivenciamos de verdade. São duas coisas diferentes).

A imagem da mulher guerreira sempre veio a minha mente ao observar minha própria família. Eu chamava minha mãe de guerreira, minhas tias e tantas com as quais convivi e que viviam sobrecarregadas com o peso de responsabilidades extras.

Da mesma forma acontece com as mães. Quando elogiamos mães por serem “tudo na vida de um filho”, por “somente elas entenderem a dor do filho”, estamos, no fim das contas, aplaudindo a omissão masculina na criação e, principalmente, a omissão do Estado e da sociedade.

Uma criança não é somente responsabilidade de pai e mãe. Vejam, crianças são o futuro da sociedade! Para que ela se perpetue, para que evolua e traga novos valores, é preciso que todas e todos invistam naquela criação. “É preciso uma aldeia inteira para se criar uma criança”, diz o provérbio africano. Se sonhamos com um futuro melhor, é preciso que tenhamos adultos melhores nesse futuro. E isso começa na infância.

– “Ok, entendi que isso tem a ver com machismo. Certo? Homenagear por homenagear mulheres só apaga a luta?”

Isso! Mas quero falar também da psicofobia, outro preconceito muito naturalizado pelo Sistema – a discriminação com as pessoas neurodiversas e/ou com transtornos mentais e que são consideradas piores que as neurotípicas, as que estão “dentro de um padrão esperado”.

É comum ver textos de mães de autistas se vangloriando na internet. Nada contra a autoestima, juro! Precisamos sim nos elogiar pelo que somos, pelo que fazemos e, se existe uma grande solidão, uma grande carga em cima das mães, essa é ainda maior sobre as mães de crianças com deficiência.

O que não podemos nem devemos é incorrer em dois erros: silenciar o quanto o sistema patriarcal é responsável pela carga extra da mulher e como a maioria dos textos veiculados, além de apagar essa responsabilidade, traz consigo uma discriminação contra as próprias crianças com deficiência.

São também textos que não conversam com as desigualdades sociais, como se elas não existissem, como se todas as mães fossem iguais e tivessem os mesmos direitos e dificuldades.

Ou você acha que não existem mães de autistas mais privilegiadas que outras? Algumas com recursos para contratar apoio, intervenções, manter o ritmo de trabalho, etc? Mães AUTISTAS com filhos autistas que não foram diagnosticadas e que não tem suporte terapêutico para dar conta da rotina diária, que é ainda mais cansativa para elas? Mães negras e periféricas que ainda sofrem com o racismo e a exclusão social, já que, como diz Rita Louzeiro (mulher, autista e negra), o estigma de “anjo azul” não chega na periferia?

Não há dúvidas que existe uma maioria de mães sem apoio do Estado, do próprio companheiro e da sociedade em geral. Sociedade essa que vem chegando ao cúmulo de proibir a presença de crianças em determinados locais abertos ao público geral, por questões de “sossego dos adultos que escolheram não ter filhos”. Uma sociedade que caminha para um estar juntos por questões demográficas, não sociais.

Ao mesmo tempo, temos crianças que nasceram com corpos e mentes diferentes. E, desde a infância, essa diferença é hostilizada, tratada como algo inferior, pior, inclusive pelos próprios pais e mães, que tentam, algumas vezes, disfarçar o preconceito em forma de “textos inspiradores“. Desculpa, isso também acontece.

Quando textos de mães de autistas enumeram as qualidades dessas mães, eles estão transmitindo, indiretamente, que ser mães dessas crianças é um fardo, um castigo e uma maldição. Que somente “enviadas especiais” poderiam dar conta desse “carma”. Não raro, escorregam para a outra ponta da psicofobia, ou seja, desumanizam aquela criança intitulando-as de “anjos azuis” que, para serem suportadas, precisam igualmente de mães “angelicais”.

Anjos não mentem. (Existe um mito que autistas não mentem – e ter dificuldade de expressar emoções não se equivale a não mentir.)

Anjos não fazem sexo. (Autistas não oralizados são, frequentemente, tidos como crianças que não cresceram, infantilizados pelos pais e, por consequência, sem qualquer direito à vida sexual.)

Anjos não existem na terra. Mas autistas existem. E são muito mais do que Kanner, em seus mais belos sonhos (ou pesadelos, vai saber), conseguiria vislumbrar.

Somos todas e todos, homens e mulheres, pessoas com ou sem deficiência, crianças, adultos, idosos, negros, negras, LGBTTs, etc.etc. seres HUMANOS. Dotados de competências e desafios.

Existem mulheres que se tornam mães de crianças autistas e que são ótimas mães. Outras, nem tanto, outras, jamais deveriam ter sido mães, vamos falar a verdade.

Existem homens que se tornam pais de crianças autistas que são ótimos pais, outros nem tanto, outros jamais deveriam ter sido pais, nem de um simples cacto, quanto mais de seres humanos.

Existem pessoas na sociedade que deveriam viver em uma ilha, pois não sabem viver em sociedade, não entendem o significado disso.

Existem crianças autistas com personalidades variadas, com condições coexistentes, algumas precisando de muito apoio na vida, outras nem tanto, e nem por isso são mais ou menos autistas que outras, melhores ou piores, mais difíceis ou mais fáceis de lidar. Continuam sendo crianças, com um cérebro que trabalha de uma forma diferente do cérebro da criança não autista e que precisam ser acolhidas, aceitas, respeitadas e amadas. Só amor não basta.

Quando falamos da importância do diagnóstico do autismo, é por ser ele um direcionador de como apoiar aquela criança em seu desenvolvimento e em sua qualidade de vida. Nunca, nunca para se tornar um limitador ou um atestado de incapacidade.

Porém, quando esses textos circulam, é a incapacidade das crianças que vem a mente de cada um de nós, aliada a ideia de que a mãe deve ser uma super heroína para criá-la.

Ao mesmo tempo – que contradição! Quando autistas adultos falam da sua própria condição, já que sim, estão acostumados a serem autistas e não querem deixar de ser quem são, que cobram sim do Estado e da Sociedade que cumpram sua parte e eliminem do ambiente as barreiras existentes no ambiente para que todos os autistas possam ter acesso a direitos, são essas mesmas mães que chegam a ofendê-los por “romantizarem o autismo e não mostrarem o lado feio da condição”, ou seja, a necessidade de maior apoio e suporte do autista não oralizado (e, no fim, elas estão reclamando é da Sociedade e do Estado, não do filho, só não entenderam isso ainda…)
Mulheres, sejam elas mães ou não, de crianças autistas ou não: vivemos em um mundo no qual o preconceito e a desigualdade dominam, de todas as suas formas. Não precisamos e não devemos fortalecer esse Sistema cruel.
Jogue a capa de super mulher, super mãe, super tudo pra fora e vem ser gente. Vem olhar para o autista por outra ótica, como um aprendiz que olha para o que ainda não conhece de fato. Cobre sim do Estado e da sociedade que façam a sua parte, que cumpram a legislação, que adaptem o mundo para que todas e todos, sem exceção, possam acessar os direitos humanos. Mas não de você, não do autista.

Esqueça esses “textos inspiradores” que manipulam a realidade e apagam as reais causas das dificuldades que você e seu filho enfrentam no dia a dia.

Seu filho não precisa ser perfeito. Nem você.

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